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O QUE É O SER HUMANO? Uma síntese entre natureza e cultura.

Atualizado: 19 de abr. de 2020

TEXTO DE APOIO AO PROFESSOR = É essencial o pensamento filosófico que antecede o teológico como sustento de toda e qualquer análise na Área de Ensino Religioso.(ER09ER34MG) Reconhecer que na construção das identidades são importantes os princípios éticos e morais, pois dão qualidad às relações de amizade e afeto.


Quando nos perguntamos "O que é o ser humano?", começamos nossa investigação filosófica, que tem como fundamento o seguinte problema filosófico:

o que há de especial no ser humano que lhe permite buscar respostas sobre a origem e o funcionamento do Universo e sobre a sua própria natureza?

Muitos pensadores, ao longo dos séculos, buscaram definir a natureza humana, diferenciando-a da dos demais animais. O filósofo espanhol Jaime Balmes foi um desses pensadores. A esse respeito ele afirma:


Somente a inteligência humana examina a si mesma. A pedra cai sem tomar conhecimento de sua queda; [...] a flor nada sabe de sua encantadora beleza; o animal bruto segue seus instintos, sem perguntar a razão de tê-los, apenas o ser humano, na frágil organização que aparece um momento sobre a terra para desfazer-se em pó, abriga um espírito que depois de abarcar o mundo, anseia por compreender-se recolhendo-se em si mesmo [...].
BALMES, J. Filosofia fundamental.Disponível em: http://goo.gl/hHD95 Acesso em 17.10.2012.

De acordo com a definição do filósofo, a marca distintiva entre os seres humanos e os demais animais é a capacidade que os humanos têm de pensar. No entanto, podemos questionar essa definição e nos perguntarmos se o que distingue a natureza humana é o pensamento.


O ANIMAL HUMANO


Existem relatos de crianças que teriam crescido fora do convívio humano e que, portanto, não teriam passado pelo processo de adaptação necessário para desenvolver habilidades e características próprias de sua espécie.

Um caso interessante é o das meninas-lobo, Amala e Kamala. Embora não possa ser considerado um relato verídico, esse caso ilustra a capacidade adaptativa do ser humano ao meio social. Diz-se que, e, 1920, na Índia, foram encontradas duas crianças, Amala (1 ano e meio) e Kamala (8 anos), vivendo em meio a uma família de lobos. Segundo relatos, elas se comportavam como animais, caminhavam de quatro, apoiando-se sobre os joelhos e cotovelos, alimentavam-se de carne crua ou podre, não possuíam características humanas e nunca riam ou choravam. Após serem recolhidas por uma instituição, Amala viveu por mais um ano e Kamala, por mais nove. Nesse período, Kamala foi se humanizando lentamente, tendo aprendido a andar e a falar, embora com um vocabulário bem restrito.


Esse relato instiga a discussão sobre o que distingue o ser humano dos outros animais. Levando esse caso em consideração, é possível afIrmar que o ser humano não nasce com características culturais e sociais, tipicamente humanas, mas as adquire devido ao processo de socialização em uma cultura. De acordo com o relato, essas crianças, por terem sido privadas do contato humano desde o seu nascimento, não realizavam ações como chorar, sorrir e falar, e seu processo de humanização ocorreu apenas quando elas foram levadas para o convívio social, o que lhes permitiu desenvolver algumas características, afastando-se, assim, do mundo desumanizado no qual estavam inseridas.


Rômulo e Remo, segundo a mitologia romana, foram os fundadores de Roma e teriam sido amamentados por uma loba.


LIBERDADE E DETERMINISMO


Com exceção do ser humano, os demais animais vivem em harmonia com sua natureza, agindo de acordo com seus instintos, o que torna possível prever seu comportamento em diferentes situações. Por esse motivo, dizemos que os animais são seres determinados, uma vez que herdam de sua espécie a programação biológica que dita as regras de comportamento, não sendo possível que um animal, por vontade ou raciocínio, "decida" não fazer algo ou possa agir de maneira diferente daquilo que já está predeterminado por sua natureza. Nesse sentido, é possível afirmar que os animais (a exceção do ser humano) não são livres.

Os animais não humanos já nascem com os aparatos naturais necessários para a sua sobrevivência e, portanto, com a possibilidade de adaptação ao meio em que vivem. Suas ferramentas naturais, como asas, pelagem, garras, dentes, além de tantas outras características, lhes permitem superar obstáculos e sobreviver a muitos desafios. Ainda que existam animais com um maior grau de "inteligência" - como os chimpanzés, os golfinhos, algumas raças de cães, entre outros -, tal raciocínio é incomparável ao raciocínio humano e à sua capacidade de conhecer e de comunicar-se por meio de uma linguagem simbólica.

O ser humano é o único animal que não possui nenhuma característica física especial que o capacite a lidar com os desafios das forças da natureza, sendo um dos animais mais frágeis e um dos únicos desprovidos de aparatos naturais que garantam sua sobrevivência. No entanto, devido à sua capacidade de pensar, o ser humano consegue criar mecanismos que lhe permitem superar as suas limitações físicas.


Na história evolucionária, relativamente curta, documentada pelos restos fósseis, o homem não aperfeiçoou seu equipamento hereditário por meio de modificações corporais perceptíveis em seu esqueleto. Não obstante, pôde ajustar-se a um número maior de ambientes do que qualquer outra criatura, multiplicar-se  infinitamente mais depressa do que qualquer parente próximo entre os mamíferos superiores, e derrotar o urso polar, a lebre, o gavião, o tigre, em seus recursos especiais. Pelo controle do fogo e pela habilidade de fazer roupas e casas, o homem pode viver, e vive e viceja, desde o Círculo Ártico até o equador. Nos trens e carros que constrói, pode superar a mais rápida lebre ou avestruz. Nos aviões, pode subir mais alto que o gavião. Com armas de fogo, pode derrubar animais que nem o tigre ousa atacar. Mas fogo, roupas, casas, trens, aviões, telescópios e revólveres não são, devemos repetir, parte do corpo do homem. Pode colocá-los de lado à sua  vontade. Eles não são herdados no sentido biológico, mas o conhecimento necessário para sua produção e uso é parte do nosso legado social, resultado de uma tradição acumulada por muitas gerações e transmitida, não pelo sangue, mas por meio da fala e da escrita.

CHILDE, Gordon. A evolução cultural do homem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996, p.40-41

Enquanto os outros animais agem puramente por instinto, vivendo em um mundo fechado e sem liberdade, adaptando-se à natureza e cumprindo as determinações de sua herança biológica, o ser humano pode superar suas limitações naturais porque é capaz de adaptar a natureza às suas necessidades, o que constitui o traço característico da presença humana no planeta. Ao afIrmar que " toda a nossa dignidade consiste, pois, no pensamento", o filósofo Blaise Pascal estava dizendo que o pensamento é o que torna os seres humanos especiais, pois, por meio dele, o ser humano pode encontrar respostas para superar os constantes desafios de sua existência. Assim, entre todos os seres vivos, o ser humano é o único que pode escolher agir de uma forma ou de outra, ou seja, se autodeterminar, sendo capaz, por esse motivo, de produzir cultura e de transmiti-la aos seus descendentes por meio, principalmente, da linguagem simbólica.


O SER HUMANO É LIVRE OU DETERMINADO?


O conceito de liberdade, tomado no sentido antropológico, não se refere ao sentido usado no senso comum, de que a pessoa é livre para ir e vir, mas à possibilidade do sujeito de se autodeterminar, ultrapassando aquilo que lhe foi ditado por sua natureza. Por outro lado, de acordo com a perspectiva do determinismo, as ações humanas, tal como a dos outros animais, estão previamente determinadas por condicionamentos, sejam biológicos, sociais, psicológicos, políticos, entre outros, de modo que as ações podem ser antecipadas em uma relação de causalidade, não havendo, portanto, liberdade. Veremos como algumas posições filosóficas diferentes tratam dessa questão.

O pensador renascentista Pico della Mirandola é considerado um dos maiores representantes do humanismo renascentista devido à sua reflexão sobre a dignidade humana, a qual está expressa no texto Discurso sobre a dignidade do homem (1486). Nessa obra, Pico della Mirandola defende que o ser humano é um verdadeiro milagre, visto que, enquanto os outros seres nascem com uma essência predeterminada, sendo ontologicamente obrigados a cumprir aquilo que a sua natureza determinou, não por vontade própria, mas por uma vontade anterior a eles mesmos, o ser humano é, por sua vez, o único responsável por si mesmo, pois é o único que pode se construir. O ser humano foi colocado entre dois mundos, com uma natureza não determinada e capaz de, por sua inteligência, escolher ser o que quiser. Veja, no texto a seguir, como Mirandola expõe essa questão:

A ti, ó Adão, não te temos dado, nem um lugar determinado, nem um aspecto próprio, nem qualquer prerrogativa só tua, para que obtenhas e conserves o lugar, o aspecto e as prerrogativas que desejares, segundo tua vontade e teus motivos. A natureza limitada dos outros (seres) está contida dentro das leis por nós prescritas. Mas tu determinarás a tua sem estar constrito por nenhuma barreira, conforme ter arbítrio, a cujo poder eu te entreguei. Coloquei-te no meio do mundo para que, daí tu percebesses tudo o que existe no mundo. Não te fiz celeste nem terreno, mortal nem imortal, para que, como livre e soberano artificie, tu mesmo te esculpisses e te plasmasses na forma que tivesses escolhido. Tu poderás degenerar nas coisas inferiores, que são brutas, e poderás, segundo o teu querer, regenerar-se nas coisas superiores, que são divinas.
[...]
Ó suprema liberalidade de Deus, ó suma e maravilhosa beatitude do homem! A ele foi dado possuir o que escolhesse; ser o que quisesse. Os animais, desde o nascer, já trazem em si, no 'ventre materno', o que irão possuir depois. [...] No homem, todavia, quando este estava por desabrochar, o Pai infundiu todo tipo de sementes de vida. As que cada um cultivasse, essas cresceriam e produziriam nele os seus frutos. [...]
MIRANDOLA, Pico della. A dignidade humana. Tradução de Luís Feracini. São Paulo: Escala, p.39-42.

De acordo com a posição de Pico della Mirandola, apenas o ser humano é verdadeiramente livre, enquanto os outros animais, nas palavras do filósofo, "desde o nascer, já trazem em si, no 'ventre materno', o que irão possuir depois".

Assim, apesar de um pássaro aparentar ser livre para voar de um lado a outro, e o ser humano ser, muitas vezes, absorvido em suas tarefas e obrigações diárias, o pássaro não é livre porque ele age de acordo com uma determinação de sua natureza. Por mais que ele possa se locomover de um lado a outro, ele não o faz porque escolhe ou querer fazê-lo, mas tão somente porque obedece aos seus instintos, agindo de forma mecânica. O ser humano, por outro lado, tem a possibilidade de se autodeterminar, e, inclusive, de controlar seus instintos, não sendo escravo de sua natureza. Dessa forma, para Mirandola, o ser humano se constitui de características advindas da natureza e da cultura, sendo, portanto, uma síntese entre os dois polos, o que possibilita que ele transforme a natureza, mas também seja influenciado por ela, sem, no entanto, ser determinado. É criatura e criador do mundo em que vive.

Coleção Estudo. Filosofia/Sociologia - Belo Horizonte: Bernoulli Sistema de Ensino, 2016, p.3-5.

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